quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Um Beijo nem sempre é só um Beijo - Teatro Paraibano

TEATRO

Um Beijo nem sempre é só um Beijo
Por Astier Basílio


Há dez anos morria o dramaturgo e diretor paraibano Leonardo Nóbrega. Mas, que foi ele, quantas peças escreveu e as peças, como lê-las? Faz-se necessário que alguém se prontifique a fazer um trabalho que resulte da preservação da memória de Leonardo Nóbrega. Isso é fato. Em sua homenagem e marcando sua despedida dos palcos paraibanos, Duílio Cunha, que está indo morar no Ceará, encena "Beijo Roubado". A peça
foi escrita em 1990, passou quatro anos em cartaz, com grande sucesso de público. Duílio já havia montado o texto "O pai do mangue", do mesmo autor.
Os ajustes, conta Duílio, foram poucos. A trilha sonora, regida por Ângela Maria- excelente por sinal e indicada já no texto - traduz toda a atmosfera dos bordéis. As músicas foram realçadas pela coreografia simples e correta de Maurício Germano.
- Tive de retirar muitas expressões da época, como Funrural, Inamps,conta Duílio.
O diretor deixou pelo menos duas piadinhas do original: "Só quer ser Sônia Braga, a 'Dama da Lotação'" e "Brilhei mais do que Frank Sinatra no Maracanã". Na época deve ter sido muito engraçado. Na platéia da remontagem, muita gente jovem 'voou' com as referências. Ainda bem que Duílio preferiu retirar as demais. Mas, o problema é que não renovou o
repertório. E a falta de mais humor na peça ficou evidente. Não sei quantos cortes foram feitos e se alguns deles se referiam às pitadas humorísticas da peça, que se passa basicamente em um prostítulo, com quatro prostitutas, dois jovens e duas velhas, mais um
travesti. Quando vi em cena as atrizes de imediato me lembrei dos conflitos engrendados por Shakespare envolvendo o velho e o novo. Mas, infelizmente, o texto não se valeu disso. Os conflitos não foram bem desenvolvidos, ficaram no lugar comum da vitimização das personagens. O submundo da prostituição como tema e o vocabulário sujo da fala do
dia-a-dia, do coloquialismo sem medo de palavrões evocam apenas a superfície de Plínio Marcos. Mas, o nível de complexidade da trama cai consideravelmente quando Leonardo tenta fazer do teatro palco para engajamentos sociais, rebaixando a qualidade de seus personagens ao apresentá-los como coitadinhos - nada mais surrado e batido do que prostitutas vítimas de abuso sexual do padrasto, travesti que sustenta a mãe doente...
No programa da peça de 1990 - aliás, mesmo precário um programa é uma espécie de documento, pena que nem sempre as produções locais têm atinado para isso - Leonardo escreve que a feitura do texto veio após intenso laboratório, com realização de questionários com prostitutas e fala ainda de sua preocupação política e social. Tudo muito bonito, politicamente correto, engajado e cheio de boas intenções. Mas, com boas intenções dificilmente se faz bom teatro. Logo na primeira cena temos um 'flash-back' em que sabemos que Vanda está ali porque foi abusada pelo padrastro. Depois, tomamos conhecimento que Val (William Muniz) cuida de uma mãe em estado terminal. Edu, o rufião da travecona, e Sara, a prostituta nova, são menores de idade, todos requerendo empatia e autopiedade.
Uma das saídas para o espetáculo seria o humor e teríamos no eixo das prostitutas mais velhas: Cida Costa - que está em todas as montagens de 'Beijo Roubado' e já trabalhou com Duílio em "As Velhas" e "Comédia em 3 x 4"- e Madalena Aciolly (de "Como Nasce um Cabra da Peste").
Mas, o texto, "mutilado" emperra. E dá pra perceber o esforço mesmo de Madalena em arrancar mais de sua personagem, provocar risos, o que consegue por sua bem realizada performance. Cida não fica atrás. Um de seus grandes momentos é a dancinha que faz, como a esperar clientes, em beira de estrada. Cida foi conseguiu, como o humor, comover muito mais do que com as justificativas que o texto trouxe anteriormente com o sentimentalismo.
Raquel Domingues deu mostras do que pode render, mas o seu papel não possibilitou muito e ela também não foi além dele. Duílio já deu mostras de que é um dos nossos grandes encenadores, de que seu trabalho é competente, mas tinha de ter uma opção mais clara: podia se optar por uma coisa meio "musical" - há trilha e dança pra isso - ou "comédia" rasgada mesmo, fazendo ajustes, atualizando o texto. Ficou uma coisa meio atravessada, mal resolvida.
Astier Basílio é poeta, jornalista, teatrólogo e colunista do Correio das Artes
(Correio das Artes, agosto de 2007)

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