quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Ensaio sobre a Cegueira: um divisor de águas na obra de José Saramago

Ensaio sobre a Cegueira:  um divisor de águas na obra de José Saramago
Por Johniere Alves Ribeiro

O homem é a corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. (NIETZSCHE)






Falar da obra de um escritor não é tarefa fácil – principalmente quando se trata de um romance singular como é o caso de Ensaio sobre a cegueira ( doravante usaremos ESC) – e quando este escritor é José Saramago a responsabilidade nos pesa ainda mais, pelo quilate do conjunto de sua obra. É nesse sentido, que estaremos observando, dentre deste conjunto, o papel preponderante do romance ESC, que sem dúvida, é uma espécie de divisor de águas da escrita saramaguiana.
Para que se compreenda melhor o modo como se dá esta cisão, é de fundamental importância tecermos alguns comentários relevantes sobre o período que antecede o lançamento de Ensaio sobre a cegueira. Sendo assim, podemos dizer que José Saramago é um autor engajado -  por opção e declarado -  preocupado com o modelo da sociedade vigente. Vejamos o que nos informa Álvaro Cardoso Gomes, importante crítico de Saramago,  sobre este aspecto da sua obra :
... Saramago é o que abraça de maneira evidente uma arte compromissada, ou ainda, um romancista que acredita que o romance seja um instrumento de resgate das classes desfavorecidas e um instrumento de denúncia dos desmandos dos poderosos. (  GOMES : 1993, p.34) 
Como podemos observar nesta afirmação de Gomes, José Saramago é um autor interligado com sua época e com seu tempo, não apenas no sentido de descrever os fatos, mas também de analisá-los de maneira racional e crítica. Daí a importância de contextualizarmos o período em que surgem as obras deste autor português, haja vista que este contexto influenciará diretamente em seus romances. Contudo, nossa intenção neste ensaio não é de maneira alguma cair no campo do biografismo, buscando, com estes dados pesquisados, colocar o romance numa camisa de força, na qual tudo é influência da vida do autor. Queremos, outrosim, apenas mostrar que não há como fazer uma análise da obra de um autor, que claramente expõe suas ideologias nas histórias que escreve, sem fazer algumas referências ao seu contexto de produção, como também compreender  o lugar de uma determinada obra na linha de produção de um autor. Desse modo, tentaremos mostrar como se constitui o lastro da escrita saramaguiana  até a chegada de ESC.       
Podemos dizer que José Saramago é um escritor eclético, que produziu obras relacionadas ao gênero lírico, passando pelo ensaio e pela biografia, traduções, crônicas, contos,  chegando até ao gênero dramático. Contudo, é com a produção de romance que Saramago consegue atrair não só a atenção da crítica  e dos analistas em literatura, como também dos leitores de um modo geral. Seu primeiro romance publicado foi Terra do Pecado ( 1947), de acordo com o próprio autor e com os estudiosos da literatura, como pode ser visto em Gomes (1993) este livro não é tido como uma das melhores obras por ele produzidas, todavia não pode ser desconsiderado, visto que Terra do Pecado foi a pedra fundamental para toda construção literária do autor; neste romance já se configuram muitas das principais características que seriam acentuadas nas narrativas posteriores.
De acordo com Gomes, é com o romance Levantado do Chão ( 1980), publicado trinta e três anos após o autor ter lançando aquele seu primeiro livro, que o escritor português consegue o reconhecimento por parte dos críticos e estudiosos da literatura. Neste romance, Saramago conserva ainda um tom neo-realista. Nele o autor trata de fatos que têm ligação com a realidade: as lutas de camponeses que habitam o Alentejo.  A narrativa deste romance percorre todo o século XX , mas sempre investindo em idas ao passado remoto para tentar compreender a presente exploração fundiária vivida pelos camponeses, que culminara na famosa Revolução dos Cravos. Contudo, em paralelo a esta luta, mais especificamente, Saramago também retrata e investiga em LC outras lutas sociais, como por exemplo a instauração da República, as Grandes Guerras e a Guerra da Espanha.   
Dessa forma, José Saramago consegue instituir nestas obras de caráter mais histórico uma singular conexão entre o passado e o presente, o que convenciona uma espécie de metaficção-historiográfica, provendo um percurso inovador na estrutura tradicional do romance-histórico.  
Estas são obras, como já falamos acima,  que antecedem Ensaio sobre a cegueira (1995), que inicia o 2o circulo das obras saramaguiana, e que foram postas em destaque até aqui, para termos uma idéia geral do que acreditamos ser o primeiro ciclo dos romances de José Saramago, que tinha como teor principal, em boa parte deles, um compromisso com a historicidade dos fatos narrados. Com isto fica mais fácil notar que ESC é uma obra que dá novo rumo ao estilo do autor português, principalmente no tocante às temáticas que vinham sendo por ele desenvolvidas, todavia é importante salientarmos que muitos dos aspectos como: a narração fantástica, sobrevalorização das personagens do povo e do seu cotidiano, uma história pautada em uma ideologia, dentre outros aspectos, são profundamente reinventados em ESC.
Nele o autor português relata que um determinado país ( não nomeado pelo narrador, uma das inovações de suas histórias, pois até então, antes deste 2o circulo, encontrávamos delimitação exata do lugar onde se passava a história ) é tomado por uma epidemia: uma cegueira branca. Desta cegueira não se sabe ao certo a origem, ela apenas se espalha por todo o território e seu contagio é rápido e eficaz, de modo que não há como a vítima se defender ou até mesmo procurar um tratamento. Isso porque, como não se sabe as causas da epidemia, e os órgãos competentes foram pegos de surpresa, não se tem vacinas e nem perspectivas de cura. São afetadas pessoas de todas as classes sociais. O primeiro cego, assim chamado por ter sido o primeiro contagiado, foi contaminado em pleno semáforo. Em seguida, os casos de cegueira vão se acrescentando dia após dia, fazendo com que os governantes tomem medidas drásticas e isolem os pacientes em quarentena, num manicômio abandonado. Lá se misturam os tipos mais variados de indivíduos. É neste ambiente que encontramos as personagens, que não consideramos protagonistas no sentido tradicional, já que acreditamos que todos desempenham um papel de destaque no enredo.
Ensaio sobre a Cegueira foi o romance que,  de acordo com André Bueno, faz parte de uma espécie de trilogia -  somado a Todos os nomes ( 1997) e A caverna  ( 2000) - que consolidou a obra de José Saramago, fazendo com que o autor tomasse seu lugar entre os importantes escritores de textos ficcionais da contemporaneidade. ESC  abre esta trilogia e traz uma estrutura inovadora; é o romance que quebra com o modelo da prosa romanesca que José Saramago vinha desenvolvendo até então. Esta narrativa oferta ao conjunto da obra saramaguiana uma qualidade particular, que até então não se tinha visto em seus textos.
Desse modo, podemos afirmar que José Saramago trilha o seu caminho numa espécie de contra-mão, pois contraria o senso comum não só no que diz respeito ao conceito do é que  produzir na velhice, mas também em relação ao modo de compor sua narrativa, haja vista que não segue os moldes convencionais de contar história.   
Um importante caráter inovador na narrativa do escritor de ESC, e inaugurado nesta mesma obra, está ligado ao ritmo que ele consegue impor a sua escrita, que em alguns momentos faz com que o leitor remeta à lembrança de se estar lendo um texto poético, criando uma espécie de prosa-poética. Esta “musicalidade/rítmica” é alcançada aliando à narração a enumeração, comparação e metáforas, provérbios e ditados populares, e principalmente, reinventando o uso da pontuação, aproximando-a daquela que acontece no discurso oral.    
Talvez esta proposta estilística, além de ser uma atitude dos escritores contemporâneos, seja uma reposta rebelde contra as inibições impostas pela opressão do contexto de produção, no caso do escritor aqui exposto, o salazarismo que com mão de ferro censurava os intelectuais daquela época sombria para a arte de um modo geral. Sendo assim, José Saramago rompe com a tradição clássica de se escrever um romance, quebrando toda e qualquer regra preestabelecida. Portanto, não se encontra em Ensaio sobre a Cegueira as “devidas” marcas de pontuação para delimitação dos diferentes momentos da fala dos personagens, todavia durante a leitura da obra, apesar de tal inovação – haja vista que nos romances anteriores não tinha esta prática -, o leitor aos poucos vai se acostumando à lógica interna da narração e percebe que as letras  maiúsculas, na maioria das vezes, é que indicam o momento de um novo interlocutor:
Disse a mulher do médico, O melhor será que se vão numerando dizendo cada um quem é. Parados, os cegos hesitaram , mas alguém tinha que de principiar, dois dos homens falaram simultaneamente, sempre acontece, os dois se calaram, e foi o terceiro que começou, Um, fez uma pausa, parecia que ia a dizer o nome, mas o que disse foi, Sou polícia,  e mulher do médico pensou, Não disse como se chama, também saberá que aqui não tem importância. Já o outro homem sentava, Dois e segui o exemplo do primeiro, sou motorista de táxi. O terceiro homem disse, Três sou ajudante de farmácia. (ESC,  p. 66)  
É interessante notar que a escrita proposta pelo autor segue o modelo contínuo do pensamento. Percebe-se que neste fragmento existe uma ordem cronológica, apesar de não estar expressa numa seqüência paragrafal, como acontece nas narrativas tradicionais. Nesse sentido, o modo como o texto é disposto em seu contexto não define os limites existentes entre narração, descrição e dissertação, dessa forma, quem fica responsável para delimitar tais prerrogativas é a mente do leitor. É este o segredo da maneira original que o escritor de ESC eleva esteticamente a palavra, transformando-a em um expressivo instrumento de arte para descrever a essência humana: o pensamento. De acordo com Marco Lucchesi :  Já não se trata de uma palavra peregrina, mas de uma palavra comprometida. ( LUCCHESI: 1997, p.16) 
Um outro fator importante no tocante à escrita de José Saramago, que também se inicia em Ensaio sobre cegueira, é a nomeação dos personagens, que não acontece nesse romance e reincidirá em obras posteriores. Dessa forma, quem lê ESC percebe que a caracterização dos personagens não se prende aos possíveis nomes que viriam a ter, mas sim a sua função social, suas características físicas ou pelo tipo de discurso proferido,como visto no exemplo acima: a mulher do médico.   
Subversão. Talvez seja essa a definição que poderíamos dar a este estilo produzido pelo autor português. Subversão ao pontuar seus romances, subversão ao elencar temas que envolva a esfera social, de modo que não torna sua obra meramente panfletária de idéias e ideais; subversão ao mudar a lógica da narrativa, etc. Esta talvez seja a maior das características da escrita saramaguiana, um tópico que a torna nova e coerente, enfim, em seu projeto literário. Carlos Reis, um dos grandes críticos da obra de Saramago, afirma o seguinte sobre este estilo romanesco do escritor de ESC:
(...) de tudo isso também da famosa reformulação da pontuação que não poucos engulhos causa a quem ainda não percebeu que ler um texto literário é ( também) aderir a um lógica de singularidade enunciativa que só persiste e se impõe na medida em que quem a formula  é detentor de um projeto literário sólido e coerente. (REIS: 1999, pp.14-15)
Esta questão da pontuação é importante para a compreensão tanto do estilo produzido por José Saramago como também para a compreensão do romance aqui em questão, pois é este fato responsável para aproximação do discurso oral, tão vivenciada pelo leitor, que cooperará para a construção dos sentidos do texto. É interessante chamar atenção para este discurso oral, haja vista ser ele é o modo efetivo de comunicação confidencial entre narrador e leitor, como também para o contexto de ESC. Isso porque num espaço em que a cegueira predomina a fala é fundamental, troca-se a visão pela audição. Assim, a pontuação corrente e a leveza da oralidade transpostas para o enredo fecham-se como um elo perfeito, sem emenda alguma.    
Ao nosso ver, a escolha pela utilização dessa pontuação, e não da tradicional, obriga a intervenção atenta do leitor, ativando simultaneamente as suas capacidades de ler e ouvir, para depois meditar e refletir obrigando-o a encontrar, por si só, uma lógica acerca da sua existência num mundo degradado e cheios de obstáculos em que indivíduo se encontra impossibilitado de pensar sobre o caminho que deve seguir. Dessa forma, o leitor que quiser entrar e entender a cosmovisão de José Saramago é obrigado a parar para pensar: Se podes olhar, vê, Se poder ver, repara ( Livro dos conselhos, epígrafe presente em ESC), só assim é que se pode manter um diálogo efetivo com o autor, só assim teremos o mapa à mão para desvendar os caminhos obscuros do estilo saramaguiano.
Outra inovação relevante está relacionada aos temas de que tratam as obras de Saramago pós 1o círculo, visto que os mesmo, a começar por ESC, divergem, como já falamos, do cunho histórico e da  narrativa realista tradicional. Desse modo, observamos que o autor revitaliza os principais temas tratados por aqueles, como por exemplo a miséria, a adesão às causas dos menos favorecidos ou daqueles que de alguma maneira são explorados por todos os que detêm o poder. Com isto o narrador-autor traz à tona o antigo dualismo entre poderosos versus desvalidos.
Em ESC este dualismo é reformulado com mais evidência, haja vista que o mesmo não acontece entre ricos e pobres, como no senso comum sempre se retrata e como é próprio nos seus romances considerados de primeira fase. Contudo, essa rivalidade será estabelecida entre o Estado, que exerce com autoritarismo seu poder, e os cegos que são confinados e desprezados pelos poderes públicos em um  manicômio.
Com isto podemos reafirmar o que foi dito anteriormente, quanto ao aspecto ideológico que há no interior das obras de Saramago, mas isto acontece de uma maneira estética, de modo que em alguns momentos suas histórias adquirem um caráter ensaístico – talvez esteja aí a chave do enigma que o título da obra encerra sobre si -  pois o narrador-autor questiona analiticamente a sociedade que rodeia seus personagens e consequentemente a realidade da qual fazemos parte. Para isto, o autor lança mão da ironia e do humor corporificado no discurso do narrador, fazendo com que a construção da narrativa de ficção se eleve a uma condição de suprarealidade, que seria a fusão do que consideramos “real” e do ficcional.  
Podemos ainda afirmar que a obra saramaguiana pode ser considerada como uma espécie de “epopéia moderna”, haja vista que, assim como Homero, percebe-se em algumas de suas narrativas temas sobre sua terra e sua gente. Mas, agora o narrador não depende mais da permissão das musas para que assim possa contar as histórias, fazendo com que seus romances tenham um profundo senso estético e até um tom mágico. Acreditamos que essa criação mágica funde paradoxalmente a obra deste escritor português, o fantástico e o real, de modo que ao lermos seus enredos chegamos à seguinte indagação: o fantástico se dá na sua obra porque se aproxima muito do real ou seus romances são tão reais que beiram o fantástico?  E é neste sentido que retomamos a idéia de que Saramago cria uma nova epopéia e retomamos aqui Homero, que criou e deu vida a todos aqueles mitos da Ilíada e da Odisséia e que de alguma forma se tornaram reais para o povo grego. E sem dúvida foi ESC  que endossou mais ainda tal aspecto no conjunto da obra saramguiana. 
Compreendemos, portanto, a partir do que foi exposto, que na literatura pós-moderna ou contemporânea, como queiram, as palavras - e a linguagem por extensão - não servem apenas para retratar a realidade nem para trazer para nossos dias, através da leitura, um passado que se perdeu. A linguagem cria o real; as vivências humanas somente adquirem materialidade a partir das construções (narrativas) que são criadas justamente para que elas venham à tona. Sobre aquilo que não se escreve, nem se vivência, paira a sombra do vazio - o silêncio. Desaparece, portanto, a ruptura entre ficção e História, realidade e imaginário. O universo das palavras possui o poder de forjar  experiências; desaparece, em conseqüência disso, a importância da realidade histórica como legado a ser necessariamente transmitido às futuras gerações, atributo da literatura clássica.
Nesse sentido, acreditamos que muitas cenas do enredo em questão percebe-se o elo de ligação com o fantástico – elemento utilizado com mais intensidade a partir de ESC e que o diferencia mais uma vez dos outros romances -, para isso podemos retomar a imagem do primeiro cego, no momento em que foi acometido pela “cegueira branca”. Tal cegueira é algo sobrenatural na perspectiva do narrador e também para nós, haja vista que não há explicação cientifica para este caso. Também é bom ressaltar o modo como a epidemia foi estancada; ao final da história não ficamos sabendo as causas de seu desaparecimento, simplesmente ela vai embora como que abandonando, sem  motivo algum, o corpo daqueles que a possuíam, da mesma forma que chegou.
Todorov aponta, sobre o gênero fantástico, que a principal condição  para a sua existência é o que ele chama de 'efeito de incerteza' provocado no  leitor ou nos personagens (ou em ambos ao mesmo tempo)  Para T. Todorov, haveria um outro tipo de distinção nas origens do fantástico:  sobre o estranho e o maravilhoso, ambos inscritos na esfera da hesitação. Se leitores e personagens ficcionais permanecerem indecisos  em aceitar os fatos narrados como naturais, apresentando explicações lógicas,  estaríamos no campo do 'fantástico'; quando os fenômenos incríveis ou bizarros não podem ser explicados a partir do mundo como o conhecemos, estaríamos nas esferas do 'maravilhoso'. No entanto, quando a  personagem se recusa a ver interferências de planos alheios ao mundo real, estaríamos apenas na esfera do 'estranho'.
Hoje, entretanto, essas concepções de Todorov estão superadas, porque tudo aquilo que na literatura pode ser situado no plano mágico é tido como fantástico.
Portanto, ESC faz parte da produção artística de um autor claramente comprometido com uma ideologia e com a defesa, acima de tudo, dos direitos humanos.
Graduado em Letras e Mestrando em Literatura e Interculturalidade 
( RIBEIRO, Johniere Alves - Publicado Correio das Artes, agosto de 2007)

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