terça-feira, 27 de agosto de 2013

Uma Lenda do povo Caiapó em versos do cordel - Johniere Alves Ribeiro - Correio das Artes


Assista um pouco da cultura caiapó, em uma história contada pelo grupo do “ Baú de Histórias”.  






LITERATURA

Uma Lenda do povo Caiapó em versos do cordel

Por Johniere Alves Ribeiro


Afirmar que Manoel Monteiro é um excelente poeta e que seus cordéis têm uma grande importância para Cultura Popular na atualidade não é novidade alguma. Por isso queremos apresentar aqui mais uma bela história recriada pelo vate: “Uma lenda do povo caiapó”. Cordel que nos demonstra a capacidade que Manoel tem em recontar histórias e o quanto é vasta sua bagagem e nível intelectual, qualidade de quem não é só um poeta popular, mas acima de tudo um grande leitor e pesquisador. Este perfil faz com que o poeta tenha uma maior facilidade em adaptar as mais variadas histórias do mundo mágico e do maravilhoso para o não mais que fantástico folheto de feira.      
O cordel foi impresso em oito folhas e por isso pode ser classificado como folheto. Nele observamos uma linguagem aproximada da coloquial, o que faz com que a leitura se torne mais fluída e prazerosa. É certo que Manoel, como já citamos acima, “gasta” tempo lendo e tem contato com os mais variados tipos de textos, seria impossível não encontrarmos em alguns de seus versos a presença de vocábulos inerentes à norma culta da língua.
Na capa do folheto encontramos uma bela xilogravura de Jô Andrade, logo abaixo do título e nome do autor, não é nosso intuído analisá-la, contudo não poderíamos seguir nossa leitura do folheto sem mencionarmos o que ela nos apresenta, até porque acreditamos que as capas das histórias do cordel tem muito a nos dizer. Jô Andrade nos apresenta a figura de um índio e seu olhar é de tristeza. Ao fundo vê-se um desenhos que lembra o mapa de nosso país e mais atrás, na parte que representa o litoral de nosso país, nota-se o desenho de uma das embarcações de Cabral. Este quadro descrito pelo artista Jô, representa o fatídico episodio da invasão européia e em nosso país e o olhar triste do índio nos antecipa o desfecho cruel das nações indígenas pré-cabralina aqui existente. Fica-nos claro a sensibilidade do xilógrafo, pois sua imagem neste folheto não é um mero acessório, mas sim parte integrante da história que será posta pelo poeta, enfim, sua xiló acaba se tornando uma porta aberta para uma maior compreensão do que aconteceu ao povo caipó. 
O enredo, reinventado por Manoel Monteiro, é apresentado em trinta estrofes de seis versos – sextilhas -, e estes apresentam dez sílabas poéticas. Logo no início do folheto, o poeta faz questão de frisar que temos lendas belíssimas e que estas não deixam a desejar as existentes em outros países, com este espírito “nacionalista”, mas sem beirar o barrismo, ele faz um confronto entre nossas lendas e as estrangeiras e lista algumas delas, como é o caso do Lobisomem, Saci, Boto-cor-de-rosa, etc. Em contra partida Manoel também nos lista as histórias que dão base de sustentação das clássicas histórias infantis: Branca de Neve e os setes anões, Aladim, O gatos de botas, dentre outras.
Assim, fica notória importância que este cordel tem, para a valorização de nossos contos e lendas populares, percebemos que o poeta, ao recontar tais histórias, nos oferta a capacidade de repensar nossa própria vivência com o mundo mágico inerente aos folhetos.
As estrofes, que leremos a seguir, são apenas três das sete que introduz a lenda aqui em questão, elas seriam uma espécie de preparação, momento em que o contador procurar prender atenção do seu ouvinte até que chegue ao ponto exato do inicio do enredo. Vejamos então, como Manoel Monteiro contextualiza sua história e como fica clara a idéia de comparação entre nossas lendas e as européias.

No Brasil a gente não precisa
copiar em nada outras nações,
porque temos tudo, e sendo estórias
nós as temos que vêm  de gerações,
por isso, talvez nem careçamos
de Branca de Neve e seus anões.
Nem de Ali Babá  e seus ladrões,
minaretes, oásis, najas, tenda,
porque falar disso, se nós temos
os folguedos de roda e as parlendas
os encantos do boto-cor-de-rosa,
a cobra-sem-cabeça e outras lendas?
Não por é por orgulho, me entendas
mas olhando em volta por aqui
tem gnomos pra todas as idades,
da Mão d´água na rio logo ali
deu uivos do bicho Lobisomem
às diabruras do peraltas do Saci. ( p.1)     
 
O poeta inicia enredo, propriamente dito, na terceira página, afirmando que o povo caipó vivia num paraíso, onde tudo era perfeito, e todos estavam em harmonia com a natureza e em união social. Este lugar ideal se localizava sob as nuvens. Todavia, num certo dia, alguns índios, curiosos, observaram uma fenda entre as nuvens e por esta fenda notaram que existia um outro mundo lá em baixo. Tal visão, inesperada, causou um desejo enorme de conhecer este novo mundo. Começaram a descer e assim os índios foram povoando este planeta, até que um sábio ancião, sabendo do perigo que aguardava os que para lá desciam e com medo do que podia acontecer com os que não tiveram a oportunidade de descer também, logo retirou a escada e tapou a fenda das nuvens, impedindo o êxodo de todos da tribo para esse “novo mundo” de baixo.
No início tudo lá embaixo era uma beleza, até um dia chegou o homem branco, na nova terra habitada pelos caipós, destruindo toda harmonia que eles também conseguiram estabelecer neste planeta. Este invasor poluiu os rios, o ar, desmataram as florestas o que ocasionou um total descontrole da natureza e da paz anteriormente adquiria por tal povo.  Assim, o povo caipó sentiu uma extrema falta do paraíso em que viviam e tiveram vontade de voltar para lá, mas não podiam porque a escada que dava acesso havia sido retirada há muito tempo e a volta já era impossível, só restava olhar para o as nuvens do céu e as estrelas: Hoje vendo estrelas cintilantes/ nelas vêem a maloca iluminada/ e lamenta a hora de ter vindo / povoar este terra desgraçada/ mas não podem voltar ao paraíso/ as escada de volta foi cortada. (MONTEIRO, p. 06)  
Como pode-se perceber, esta lenda do povo caipó converge para outras duas histórias. A primeira está relacionada ao Gênese bíblico e ao paraíso edênico, que representa a pureza da humanidade, seria o mito da Idade de Ouro amplamente divulgado em várias comunidades primitivas ao redor do mundo. A segunda história está interligada a do descobrimento/invasão do europeu e do homem branco de modo geral, que ainda hoje continua explorando o índio. Isto se pode observar melhor nos seguintes versos:

As floresta de ontem, belas, densas,
pejadas de frutos saborosos,
o ouro dormindo sob o leito
dos rios límpidos e piscosos,
tudo isso lhes foi subtraído
pela gana dos brancos criminosos.
Se dizendo cristãos, mas rancorosos
atiravam ao fogo os discordantes, 
dos milhões de índios que haviam
sob o jugo de leis escravisantes
os poucos restantes nem parecem
os mancebos viris que eram antes.
[...]
O canto tribal hoje é bala
e lamentos do fim de uma raça,
a água é suja, o ar é denso
com cheiro de fogo e de fumaça,
não há peixes nos rios poluído,
não tem flores, por isso não tem caça. 
Dia a dia aumenta a ameaça
contra um povo outrora tão feliz
filhos natos da Terra brasileira
e legítimos donos do País
usurpados por uns 500 anos
esta história é real,mas ninguém diz.
( MONTEIRO, p.07)  
 
Além das histórias acima relacionadas, por meio deste folheto podemos perceber que o poeta retoma o mito do velho sábio, elemento muito recorrente nas tribos indígenas. Isso pode ser notado primeiro durante o decorrer da história, pois é o velho sábio que no passado evita desgraça maior, fechando a fenda entre as nuvens e retirando a escada, como também é um velho da atual tribo que contou tal lenda ao narrador: Falar nisso, lhes peço, escutai/ uma estória que lembro no momento/ ouvi dum índio Caipó/ que sentado ao chão falava lento/ do começo do mundo, e como o homem/ cá chegou, quis saber, fiquei atento. ( MONTEIRO, p.03)  
Outro elemento que nos chama atenção neste folheto é o poeta consegue unir dois gêneros literários que tem por base a oralidade: o folheto de cordel - que já foi puramente oral -  e a lenda indígena. Esta contada, como vimos, por alguém mais experiente da tribo que sob a luz da lua e do fogo tentava explicar os mistérios do mundo ao seu povo. O poeta, mesmo que indiretamente, faz menção a este aspecto logo no inicio do folheto, na sétima estrofe, quando diz: A herança oral dum povo é esta/ que vem vindo de boca em boca e vai/ povoando à mente das pessoas/ hora ensina, hora alegra, hora distrai/ por isso hoje conto ao filho meu/ o que um dia contou meu velho pai.” (MONTEIRO,p.02)   
   Portanto, fica prova e comprovada a capacidade de reconta história, a qualidade e a seriedade com que o poeta Manoel Monteiro tem, de modo que de folheto em folheto ele mesmo vai povoando à mente de seus leitores e nos brindando com belíssimas histórias.
                        
Johniere Alves Ribeiro é Mestrando em Literatura e Interculturalidade. Professor de Literatura


 Escrito por Correio das Artes às 09h30
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