O poeta Waly Salomão é o novo secretário nacional do livro, integrando a nova equipe do Ministério da Cultura. Sem dúvida, essa equipe, que tomou posse cantando, pega-nos de surpresa e sugere uma gestão promissora pautada pela bandeira da ''Imaginação no poder''. Segundo o poeta, que inicia a nova missão com o espírito cheio de gás e otimismo, seu maior sonho é trabalhar para a divulgação da leitura no sentido da libertação - ''Sonho com um povo mais bem alimentado, letrado, gostando de livro mas sem estar oprimido pela leitura. Minha meta é transformar o livro numa carta de alforria'', falou em entrevista aoJornal do Brasil. Aqui ele contou sua história desde as primeiras leituras, na casa dos pais, onde livros eram saboreados com entusiasmo e idealismo.
- Qual é o espaço da leitura na sua vida?
- Desde que me entendo por gente, o livro tem uma posição central, como se fosse um ícone dentro de casa. Lembro-me de minha mãe discutindo com meus irmãos e irmãs os dois volumes da velha edição da Editora Globo de Guerra e paz, de Tolstoi. Eles discutiam, com grande entusiasmo, como se estivessem discutindo uma novela mexicana. A personagem da Ana Karenina, por exemplo, era centro de conversa como se ela fosse uma personagem da Glória Perez. Minha tia Etelvina, mulher de Tio Bento, lia sem parar. E eu, que já freqüentava a Biblioteca Pública de Jequié, onde morávamos, tirei para ela a edição de D. Quixote numa tradução bem rococó, de Antônio Feliciano de Castilho. Adorava aquele português rebuscado, com palavras difíceis e decorava trechos enormes do texto. Quando saiu Gabriela Cravo e Canela, compramos logo três volumes, porque todo mundo queria ler e não dava tempo. Minha irmã tinha Os sertões em capa dura e me obrigou a ler. Eu lia tudo o que me caía nas mãos e me fundia com aquelas páginas que me faziam transcender a coisa tacanha, acanhada, da vida em cidade do interior.
- Como se insere o livro na luta pela diversidade cultural?
- No respeito a todos os falares, por exemplo. Não podemos ter um falar único regido por leis gramaticais rígidas. Na Bahia, muitas vezes eu parava e ficava ouvindo um camelô e uma mulher falarem na Ladeira de São Bento. Ficava horas absorvendo aquela verve. Eu detesto é salazarismo, galinha verde de Plínio Salgado, fascismo, generalíssimo Franco. É evidente que você pode ver percepções inusitadas em pessoas carentes da ''sabença'' oficial. Não perceber isso é agir como no leito de Procusto, onde ou você corta a cabeça ou corta o pé porque ele é curto, não cabe o corpo todo. Temos que fazer o corpo inteiro da cultura esplender.
- Vem daí a invenção de seu programa Fome de Livro?
- É claro. Estamos vivendo um momento fecundo com essa capacidade de liderança do Lula, de aglutinar as vontades de um povo na sua diversidade. Aí, com o Fome Zero, um programa justíssimo do Lula, fui percebendo que no Brasil, ao lado da música popular, do pagode, do futebol, que são responsáveis pela ascensão social de setores sem saída, o livro também pode ser, e tem sido, essa alavanca de modificação da posição subalterna das pessoas na sociedade. O Fome de Livro é um projeto complementar, que considera a leitura ferramenta social.
- Você já teve uma experiência com o trabalho em comunidades no Rio, não é mesmo?
- Tive. Sou diretor de Comunicação da ONG Vigário Geral, Afroreggae cultural há muitos anos. O Júnior e o Zé Renato, há quase 10 anos, me viram no Jô Soares uma vez e me procuraram. Vi aquilo como uma coisa muito forte, me integrei logo, sem hesitação. Gosto desses cruzamentos, dessas misturas, intercâmbios.
- Como tais experiências, aliadas à sua militância, relacionam-se com a paixão pela revolução do livro na Secretaria?
- Eu vi em grupos culturais como o Afroreggae de Vigário Geral garotos anêmicos ficando mais alimentados, estimulados, aprendendo coisas, ascendendo socialmente. É por isso que aprendi a ser otimista no meio de um país encalacrado como o Brasil. Por isso não tive medo. Preferi a esperança.
- Você nem hesitou quando o Gil te chamou?
- Nem hesitei. Fui chamado na realidade por João Santana, ligado ao Pallocci, que tinha visto meu desempenho administrativo em Salvador. Essas coisas ou você não topa. Tem de dar total dedicação. É sempre uma experiência enriquecedora.
- Como foi o primeiro dia de trabalho?
- Fui chegando com bastante cautela, precaução, visitando cada setor, tentando apagar até um lado público meu espalhafatoso. Eu obedeço fielmente à liturgia do poder. Ando de paletó, gravata, tudo. Como sou barroco sei que a vida é um teatro. Não adianta ir com a roupa errada, não fazer os usos de tratamento. Entrei querendo entender em minúcia aquele espaço, querendo distinguir quem é o servidor qualificado para formar equipe. Entrei procurando uma conjunção interministerial com os outros poderes.
- E tem muita briga por lá?
- Eu acho muita graça em ver tanta briga pelo Ministério da Cultura, um ministério paupérrimo. Por que será que mesmo assim pessoas brigam por cargos, tiram os tapetes, mandam flechas venenosas para todo lado? Para a chefia da Biblioteca Nacional foi uma guerra de foice como eu nunca tinha visto. De repente, um amigo me soprou o nome do Pedro Corrêa do Lago e essa indicação caiu pra mim como uma perfeição. A gente precisa ouvir muito. É assim que pretendo agir, de uma forma pausada e com o travesseiro me servindo de sibila. Se eu errar, sei que é apenas como parte do percurso para acertar. No caso da Biblioteca Nacional, quero garantir que aquele acervo, além de ser preservado e exposto, tenha a mesma acessibilidade de padrão internacional que você encontra, por exemplo, na Biblioteca do Congresso, em Washington. Pensar a Biblioteca Nacional não como espaço imperial, mas um espaço de utilidade pública, que possa servir à população .
- Você se formou em direito no calor dos anos 60. Nessa época, já era de esquerda? Conhecia os baianos que iam arrasar depois no Rio e em SP?
- Eu convivia com eles todos. O Gil eu conheci ainda no Colégio Central, no clássico. Uma colega de classe, Vânia Bastos, fez uma reunião na casa dela e apareceu um garoto gorducho, tocando violão. Era o Gilberto Gil. Isso era em 1961, 62. Éramos uma esquerda marxista-existencialista, porque líamos Marx, Camus, Sartre e Merleau Ponty, quer dizer, essa encruzilhada de paradoxos. Assisti aos primeiros shows deles, da Bethânia, do Tom Zé. Era uma época de grande fermentação na Bahia.
- E a militância mais diretamente política?
- Participei do CPC baiano, com Geraldo Sarno, Capinan, Tom Zé. A gente levava as peças ou na Concha Acústica do Teatro Castro Alves de Salvador, ou nas favelas nascentes da cidade, como no Nordeste de Amaralina. Eu dava aula sobre Feuerbach de Marx, fazia palestras na faculdade de Medicina. Organizei também um centro de estudos chamado Antônio Gramsci, bem antes de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder traduzirem Gramsci na capital.
- E depois de 1964?
- Em 1964, o corte foi o mais abrupto possível. Mas foi também nessa época que li Tremor e temor, de Kiekergaard, genial protestante existencialista que contava de repetidos ângulos a história de Abrahão, incumbido por Deus de matar Isaac. Um livro de perspectiva cinética. Fiquei com isso na cabeça. Em volta, as pessoas andavam assombradas, amedrontadas, perdidas. Comecei a olhar outros caminhos. Na vida, se a via fica estreita, você tem de descobrir como seguir. Busquei uma sofrida vereda: a de ultrapassar a província.
( Fragmento , retirado de http://www.jornaldepoesia.jor.br/wsalomao.html#poesia)
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